Na última História de pescador do ano, apresentamos um conto de André Daniel Reinke, onde o autor nos presenteia com uma legítima história gaúcha.
Não esqueça de ouvir este episódio com fone e em um ambiente tranquilo para desfrutar de cada detalhe sonoro de mais uma linda edição feita pelo Chico Gabriel.
Finalmente, antes do texto original deste conto (abaixo), lembre-se de compartilhar este episódio o máximo possível. Este é o melhor jeito de você demonstrar carinho por nós e ajudar o #IchthusPodcast a crescer cada vez mais. Ah, e não esqueça também de marcar a gente (@clubeichthus) na sua postagem.
A espora e o contra-baixo
Texto: André Daniel Reinke
Narração: Chico Gabriel e Eduardo Silveira
Edição: Chico Gabriel
Guilherme conduzia a ambulância, a sirene aguda e as luzes vermelho-azuis piscando no escândalo da sua passagem. Precisava chegar logo ao hospital, mas o truculento trânsito não facilitava muito seu trabalho. Acelerou mais, puxou pra um lado, avançou a passos de valsa — um pra cá, dois pra lá — e entrou à direita. A rua era estreita, tinha espaço suficiente para dois veículos, mas sua irritação explodiu e a gastrite ardeu quando um carro popular bordô arrancou exatamente para o meio da pista. Ficou indignado e passou a buzinar, trocou o toque das sirenes para outro mais agressivo, grudou na traseira do inconveniente que reduziu a velocidade sem dar caminho; parecia fazer aquilo por pura afronta. Um adesivo com a frase “grosso não, tradicionalista!” que viu colado no vidro o fez perceber de quem se tratava: só podia ser! O espaço surgiu e Guilherme finalmente emparelhou ao lado e gritou ao motorista:
— Seu Juvenal, panacão, não sabe dirigir?
— Gaúcho não dirige; gaúcho monta! — berrou o velho de volta.
“Desgraçado”, pensou, e acelerou livre até o hospital. Era seu vizinho — pior, dividia o mesmo teto com ele. Moravam em uma casa de construção italiana, Guilherme no porão, a entrada pelos fundos do terreno, e Juvenal na parte superior, tendo a porta principal e o jardim da frente à sua disposição. Ambos alugavam a casa diretamente com o proprietário, um gringo dono de várias unidades naquele bairro. Guilherme, paranaense vindo de Cascavel quatro anos antes, chegara como um intruso na vida do resoluto gaudério, estabelecendo-se no porão aconchegante (uma agradável surpresa!) e de preço bastante acessível. Pretendia ficar ali um ou dois anos até melhorar a renda e ir para outro lugar, mas isso nunca aconteceu. O que lhe dava alguma esperança e salvava seus dias irritantes era o contra-baixo, que tocava bem, e os ensaios com o pessoal de thrash metal que conhecera na cidade e com quem fundara uma banda. Amante dos grandes representantes do gênero (Metallica, Megadeth e Sepultura) seu maior sonho era que sua banda atingisse o esperado sucesso e ele pudesse deixar o emprego no hospital para dedicar-se integralmente à música. Mas a necessidade de sobrevivência gritava, e as coisas geralmente não acontecem como planejamos.
Guilherme chegou ao hospital e os paramédicos transportaram o paciente para a emergência. Já era final de expediente, podia ir para casa, moído de cansaço. Aquele dia fora bem pesado — a maioria dos casos por acidentes de trânsito, o que era sempre bastante feio de se ver. Trocou o uniforme pelas habituais roupas pretas, soltou o cabelo e pegou o lotação para casa. Só pensava em chegar logo, tomar um banho, se atirar no sofá e ler alguma coisa, quem sabe tocar um pouco de baixo… Desceu do ônibus, caminhou uma quadra e, ao adentrar o portão, um fedor agrediu suas narinas com tal força que ele levou a mão ao rosto, repugnado. A terra do jardim estava revirada, tudo coberto de bosta de cavalo e tocos de mandioca fincados em intervalos regulares.
— Mas que velho porcalhão!
Ainda com a mão cobrindo o nariz, foi para os fundos e entrou em casa gritando impropérios. Fechou a porta e, por motivos óbvios, resolveu não abrir as janelas naquela noite. Foi ao banheiro, tomou seu desejado banho, depois caminhou até a cozinha onde pegou um cacetinho, lambuzou com margarina, cortou um pedaço do salame que estava pendurado na despensa, abriu uma cerveja e sentou no sofá da sala. Na primeira dentada já sentiu o fedor invadindo a casa. Lembrou-se do quanto irritava-lhe o vizinho de cima, o seu Juvenal: um senhor de sessenta e bico que usava uma imensa barba, natalina e grisalha, que escondia o rosto e emoldurava os olhinhos azuis e enrugados. Vestia sempre bombacha e alpargatas, era anti-modernista, a fina flor da grossura — e se orgulhava muito disso. Funcionário público aposentado havia pouco, sobrou tempo para dedicar-se às suas experiências agronômicas — coisa que não pudera exercitar desde que cursara Agronomia, ainda na juventude. Uma destas experiências era o monte de bosta depositada na frente de sua residência, já que ainda não conseguira reformar a casinha no sítio que adquirira há mais de dez anos — onde deveria ser o laboratório. Sua esposa, Mila, era uma mulher estóica que parecia ter saído da obra de Erico Veríssimo e pouco se importava (ou achava que não valia o esforço de colocar sua opinião) com as vontades do marido. Juvenal até que não tinha pressa de se mudar, mas o surgimento daquele metaleiro sujo e cabeludo no seu porão, como um zurrilho inconveniente, mudara tudo. Agora queria era sair o mais rápido possível. Ou fazer o zurrilho debandar antes.
Voltando à vaca fria, Juvenal escutou os palavrões do rapaz entrando em casa, “boca suja a desse puto”, pensou, e resolveu que era hora de ouvir música de verdade. Apanhou um disco de Mano Lima, colocou o máximo volume e os acordes da gaita soaram, asmáticas, um tanto chorosas:
Parece até que fui parido de a cavalo
O bom gaúcho não pode andar de a pé
Eu me criei esparramando a joera
Não é debalde que nasci no M’bororé
Lá embaixo, Guilherme ficou paralisado por dez segundos com um naco de cacetinho atravessado na garganta. — Ah não! — gritou e levantou de sobressalto. Agora era demais, cheiro de bosta e música campeira! Bateu com o cabo da vassoura no teto, o volume só aumentou, correu até seus discos, apanhou o preferido — Metallica — e colocou o mais alto que podia, as caixas de contra-baixo reverberando pelas paredes:
Yeah
I feel you too
Feel
Those things you do
In your eyes I see a fire that burns
To free you
Começava outra vez o desafio de trova galponeira entre Mano Lima e James Hetfield.
Do alto, a voz poderosa amplificada várias vezes:
Um par de espora, maneia, um forte buçal,
E um sovel de três ramal pra lidar com égua gaviona
De baixo, com igual intensidade:
One day you will see
And dare to come down to me
De cima:
Veiaqueiava eu já levantava os quarto a laço
Do pescoço inté o sovaco, le cortava mi´as choronas
De baixo:
Yeah, come on, come on now take the chance
Haha
De cima:
A mim me agrada dar um rechego de facão
De vez em quando um beliscão que é pro inimigo se alertar
De baixo:
Come dance
Assim permaneceram naquela noite. Os discos sendo trocados, horas a fio até avançar na noite e os moradores próximos não suportarem mais e chamarem a Brigada. A intervenção da lei colocou fim ao duelo, porém o armistício durou apenas o resto daquela noite. Uma briga de longa data não acaba assim no mas. Certa feita, Guilherme vinha voltando para casa, noite já alta, quando viu um gato morto, caído ao lado do cordão. Teve pena do bicho, era preto — o azar foi dele, riu sozinho —, e teve a idéia que lhe surgiu como uma faísca boba que começa a coçar e tomar corpo aos poucos. Juntou o cadáver, tirou a garrafa de vodka que levava na sacola e ali depositou o bichano. Levou para casa, pegou o cadarço de um coturno velho, fez um laço e pendurou o felino, enforcado, na varanda de Juvenal. Foi dormir, na ponta dos pés, para não acordar o homem e estragar a surpresa.
E esperou pra ver . Esperou, esperou, e nada. Passaram-se vários dias, semanas até, e não houve represália de Juvenal além das tradicionais provocações — dar a descarga quando Guilherme tomava banho, madrugar às cinco cevando o mate ou sapatear uma chula pra testar botas novas. Apenas no final de um mês, ao chegar em casa, que encontrou: um peleguinho felino, com cabeça e patas do dito cujo, depositado com cuidado na sua porta.
— Mas que velho sádico! — Guilherme não acreditava que o vizinho fora capaz de carnear o bicho e ainda preparar o pelego. Assustou-se, passou a temer um pouco mais o aposentado. Só não queria deixar seus amigos metaleiros pensarem que ele estava com medo de um velhote metido a guapo. E assim passou outro tanto de dias.
Guilherme trabalhava em uma quinta-feira chuvosa, dia calmo com apenas uma corrida pela manhã. Sentado à direção, palitando os dentes após o almoço, recebeu o chamado do rádio solicitando socorro imediato a uma vítima de ataque cardíaco. Já acelerando a ambulância, ouviu o endereço que o alarmou: era da sua casa. Logo se perguntou se era o velho ou a velha que estava batendo as botas e bandeou até o local, mais curioso do que nunca. Chegando, a dona Mila estava parada no pátio, acenando, pálida e com lágrimas apenas a umedecer os olhos, contidas no desejo de não assustar ainda mais a Juvenal, caído ao lado, entre alguns pés de mandioca pouco crescidos. A equipe trabalhou rápido, fez os procedimentos de primeiros socorros e colocou o barbudo para dentro da ambulância, a senhora sentada ao lado. Guilherme deu a partida e, ao arrancar, sentia uma apreensão, um estranho sentimento de poder, acompanhado de uma idéia: e se atrasasse um pouco? Logo desfez o pensamento, envergonhado por ter apenas cogitado algo tão absurdo e mesquinho. Correu o que pôde, como de costume, e deixou Juvenal e a patroa no hospital. Outro chamado o fez voltar à estafa de sua rotina.
Naquela noite, chegou em casa e aproveitou o silêncio que o destino lhe proporcionava. Jantou escutando discos sem outros sons a perturbar, cantou, ensaiou contra-baixo, dormiu e até estranhou não ser acordado com o tropel dos vizinhos muito cedo. Na noite seguinte, a mesma coisa: o silêncio, a liberdade, o alívio; depois completou a semana de verdadeiras férias. Tentou fazer uma festa com os colegas da banda na sua casa, não conseguiu porque, afinal, o espaço era pequeno, o pessoal não curtia muito ir lá, coisa e tal. Na segunda semana, começou a estranhar a ausência do casal campeiro e a falta de notícias, principalmente o desaparecimento da dona Mila. Talvez ela tenha passado na casa durante o dia, mas não dava para ter certeza. Resolveu se informar no hospital, mas descobriu apenas que o seu Juvenal estava em situação delicada e que tinha permanecido na UTI até o dia anterior, mas que fora transferido por estas burocracias de plano de saúde. Assim perdeu seu rastro.
A terceira semana adentrou muda, revestida de uma calma e serenidade que beirava o marasmo. Guilherme já não tinha tanta certeza que estava feliz com a nova situação, mas não dava o braço a torcer e comentava sempre com os paramédicos como estavam tranquilas suas noites. Precisava manter a fama de durão. Mas no final de semana se pegou observando o mandiocal cheio de tiririca e, antes que se desse conta, estava lá arrancando a praga. “É uma judiaria deixar isso assim”, se justificava. No mesmo dia comprou sua primeira cuia e bomba, tentou preparar um mate (que, obviamente, entupiu) e ele atirou tudo longe, com raiva de seu sentimentalismo.
A quarta semana já se tornava depressiva, ele sentia uma necessidade doida de sair de casa, ver alguma coisa. Do hospital já emendava o boteco, onde tomava cerveja e cuidava as gurias até a hora que não tinha jeito — quando os garçons começam a perguntar quer mais alguma coisa e as luzes já vão sendo apagadas — e tinha que ir embora para dormir.
Foi apenas na quinta semana que, numa fria manhã de terça-feira, Guilherme acordou com o movimento vindo de seu teto. Suspendeu a respiração, apurou os ouvidos e, num estrondo que lhe assustou, os conhecidos gaitaços soaram e a rima desceu com força:
Se por acaso um dia a morte me vier,
Companheiro que puder, me faça cruzar o Butuí
Pois toda fruta não fica longe do pé
Me levem pro M’bororé e me plantem de novo ali
Guilherme saltou da cama gargalhando, cantava — não, quase gritava:
That´s right
Let´s dance
Mmm
It´s nice to see you here
e correu para pegar seu disco do Metallica.
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