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André Daniel Reinke, que já foi Peixe Grande no Clube Ichthus, faz agora sua estreia aqui no podcast História de pescador, como autor de um conto maravilhosamente perturbador.

Não esqueça de ouvir este episódio com fone e em um ambiente tranquilo para desfrutar de cada detalhe sonoro de mais uma linda edição feita pelo Chico Gabriel.

Finalmente, antes do texto original deste conto (abaixo), lembre-se de compartilhar este episódio o máximo possível. Este é o melhor jeito de você demonstrar carinho por nós e ajudar o #IchthusPodcast a crescer cada vez mais. Ah, e não esqueça também de marcar a gente (@clubeichthus) na sua postagem.


Texto: André Daniel Reinke
Narração: Carol Simão, Chico Gabriel, Rodrigo Oliveira e TAM
Edição: Chico Gabriel

Alfredo trabalhava há trinta anos na gráfica. Começou na adolescência como estafeta e procurou aprender logo o ofício de montador de tipos, serviço ao qual foi promovido em poucos meses. Após a promoção, foi rigoroso na obstinação ao trabalho durante todos os seus muitos anos de empresa — amava agrupar as letras que compunham o bloco para impressão nas antigas máquinas tipográficas. Os anos se passaram, os tempos mudaram e as velhas impressoras foram substituídas pelas grandes máquinas offset e, com elas, remanejados ou aposentados todos os ultrapassados tipógrafos. Menos Alfredo. Ele fora mantido para atender a demanda daqueles designers esquisitões que queriam imprimir materiais ao estilo antigo. Como sempre, trabalhava em silêncio sentado na sua banqueta, olhando para os tipos metálicos nas caixas altas e baixas dispostas junto à mesa, de costas para o movimento do apertado corredor em que fora colocado. Metódico, ele chegaria ao final de um dia de expediente sem ninguém sequer perceber sua presença ali, como em todos os outros dias nos últimos dez anos.

Cíntia seguiu em passos rápidos pelo corredor, quase esbarrando em Alfredo, para buscar um cafezinho na máquina que, droga, colocaram do outro lado da gráfica só pra atrapalhar sua vida. Recepcionista, precisava achar uma colega disposta a substituí-la na mesa por dois minutos, para poder pegar sua pequena dose de cafeína.

— Merda de empresa. O café da recepção é só para os clientes, é importante usar o nosso uniforme padrão, o cliente tem sempre razão, blá blá blá, preciso sair dessa porcaria.

Parou em frente à máquina, depositou algumas moedas — não dá pra acreditar, colocaram uma vending machine só pra eliminar o custo do café —, clicou o botão cappuccino e, enquanto esperava, seus olhos verdes, por entre os longos cabelos negros que lhe caíam no rosto, encontraram os de Felipe. Um leve palpitar e um aquecimento na nuca que ambos sentiram já anunciava um relacionamento que iniciaria em breve. Ela pegou seu copo e, com um sorrateiro — Oi, Felipe! — seguiu com seus longos passos de volta para a recepção, agora não tão irritada quanto antes. Deu uma desviadinha no trajeto pra não correr o risco de derramar seu precioso café no velhinho que, sentado de costas naquele corredor, nem se mexia.

Felipe segurou seu expresso duplo, deu uma olhada pelo ângulo preferido na curvilínea silhueta de Cíntia que ia embora — o calor da nuca deslocava-se para partes menos civilizadas — e subiu as escadas para o mezanino onde ficava o departamento de arte. Passou por entre as mesas e sentou-se em seu lugar frente ao poderoso computador Mac, tela de 21 polegadas e conexão ultrarrápida na internet. Terminava de baixar o pesado arquivo.

— Puta merda levou mais de meia hora!

E podia começar a fechar a arte que deveria ser gravada na chapa ainda naquela manhã.

— Não dá pra acreditar que até ano passado ainda geravam fotolitos, troço mais ultrapassado.

Terminou de preparar o arquivo e colocou-o na fila de impressão do provedor.

— Pronto, hoje dei sorte, tenho o tempo livre, pelo menos até estourar alguma droga de urgência.

Ah, a tecnologia, como é maravilhosa! Felipe podia agora navegar pela rede, conversar com seus amigos conectados, alguns até mesmo em trânsito com seu laptop e celular prontos a responder a qualquer hora.

— Puxa, somos mesmo uma aldeia global.

A idéia de que a tecnologia unia os homens e os tornava mais próximos o deixava fascinado. Entrou no WhatsApp.

Felipe diz:
Dae Beto td blz? oq vc tá fazendo?

Beto diz:
Cara vc nao vem hj? Td mdo ta aki jogando online.

Felipe diz:
Vc naum trblha?

Beto diz:
To off hj.

Felipe diz:
Bom, eu tenho q trblha!

Beto diz:
azar teu 😀

Continuou comunicando com Alberto enquanto dava uma olhada em alguns sites pra pegar umas dicas de retoque de imagem na última versão do Photoshop e mandava algumas mensagens de celular mais ousadas pra Cíntia, que não lhe saía da cabeça.

— Ainda pego essa guria.

Chegou o meio-dia, o pessoal do departamento desligou os monitores e saiu para o almoço. Felipe e outros três arte-finalistas passaram por Alfredo no corredor — viram-no sem percebê-lo — e foram almoçar no lugar de costume, conversando sobre os últimos jogos lançados e as vantagens deste programa sobre aquele outro. Na saída cumprimentaram o senhor Martins, um gordinho engravatado que seguia esbaforido para o fundo da empresa, onde ficava a administração.

Martins, gerente de produção (e cunhado de Jorge, o gerente-geral-dono-da-gráfica), passou pelo corredor onde Alfredo estava, esgueirou seu gordo corpanzil pelo espaço que havia atrás do velho tipógrafo, balançou a cabeça em desagravo e caminhou até o escritório, entrando pela porta com a placa “Jorge Goodhill — Gerente Geral”. Entrou na sala e sentou-se na cadeira estofada frente à escrivaninha.

— Terminou a avaliação, Martins?

— Está pronta, Jorge.

— E…?

— Bom, como venho te dizendo, a produtividade está aquém da capacidade da nossa gráfica. A implantação do ISO 9001 foi um sucesso, nossos procedimentos estão todos padronizados e funcionando bem. Porém vejo alguns probleminhas.

— Já sei, já sei. Você vai falar do setor de tipografia… — disse Jorge, melancólico.

— Inclusive. Há algumas peças na nossa engrenagem que podem ser eliminadas pra nos levar a uma maior eficiência na produção. Uma delas é essa velharia que vocês insistem em manter.


— Martins, a gente só mantém a tipografia e o Alfredo porque ainda aparecem alguns trabalhos pra serem executados naquela máquina. Ela tem um valor sentimental pra gráfica. Além do que, o Alfredo tem mais de 30 anos de casa, ele ainda vem dos tempos do pai…

— Eu sei disso. Teu pai sempre foi muito preocupado com os funcionários, era amigo de todos, mas são outros tempos. Ele mesmo foi obrigado a ir implementando as offsets, e hoje nós temos que tomar novas decisões, para o bem ou para o mal. Se você olhar o relatório que eu preparei, vai ver que fiz balanços por setor, cruzando dados de custo e lucro, e a rentabilidade daquele dinossauro é negativa! Não é só ele, temos outros indivíduos que nos dão prejuízo e precisamos enxugar nossa estrutura pra nos tornarmos competitivos.

Jorge ficou em silêncio observando o cunhado que, oportunidades do destino à parte, tinha habilidade para gerenciamento de equipes. E principalmente para sugar sua máxima produtividade. Era difícil tomar uma atitude que iria definitivamente romper com um passado que tinha, sem dúvida alguma, valor para ele e para a empresa. Alfredo parecia ser esta ponte entre o ontem e o hoje que, aos olhos quase românticos do filho do fundador, estava para ser implodida. Pensou em Alfredo, que de certa forma estava em suas memórias — quando guri, Jorge visitava o pai na gráfica e lá estava ele, o tímido tipógrafo, sentado naquela mesa ao centro da fábrica — e se perguntou há quanto tempo não trocava palavras com o velho funcionário. Meses? Anos talvez? Não se recordava. Retornou de seus devaneios, viu que não havia jeito, o mercado chega a galope e vai atropelando a todos, precisamos nos conformar e tomar as medidas que forem necessárias, doa a quem doer. Olhou para Martins.

— Qual a tua proposta?

— Me dá carta branca pra enxugar a folha, fazer as demissões necessárias, e eu te dou uma máquina azeitada pra você competir e ganhar até das grandes do mercado.

— Também vai demitir o Alfredo? Você sabe que o velho não vai gostar muito…

— Teu pai é um homem sensato, vai saber que os tempos são outros e que precisamos fazer o que for preciso. Além do que, não é mais ele que manda aqui, é você. E está na hora de assumir a empresa em definitivo rumo ao sucesso. Vamos lá, Jorge, o futuro é nosso!

— Ok, faz o que for preciso.

— É assim que se fala! Pra não ficar gerando traumas e angústias no pessoal, vou aproveitar que é sexta-feira, final de mês, e vamos resolver isso tudo até o final da tarde. Melhor assim, não fica o clima de demissionários aqui dentro pra atrapalhar nossa reestruturação da semana que vem. Vou lá no financeiro e já defino tudo.

— Tá bom. Até mais.

— Até.

Martins saiu da sala, foi apressado até o setor financeiro e repassou a lista de funcionários a serem demitidos naquele mesmo dia. Mandou levantar os custos em pagamentos de indenizações para ignorar o aviso-prévio e encarregou sua secretária de fazer as comunicações e conduzir os dispensados para sua sala, onde faria o pagamento e uma última conversa. Em seguida passou novamente pelo corredor onde estava Alfredo, desviou do dinossauro que parecia mais improdutivo do que nunca e foi para sua sala onde receberia os demissionários um a um, quando teria sua conversa padrão sobre os dias difíceis e as decisões que as vicissitudes do mercado lhe impunham.

Durante aquela tarde de sexta-feira, Martins foi recebendo os agora ex-funcionários na ordem que a secretária os trazia. Seu olhar grave e aparente preocupação com o futuro daquelas pessoas.

— Não fique aflito, você terá as melhores referências, faremos uma carta de apresentação.

Era intercalado com outros olhares mais excitados quando mirava o novo plano produtivo colocado sobre a mesa. Pouco antes do final da tarde, estranhou a demora na apresentação dos últimos demitidos — entre os quais estaria Alfredo — e espantou-se ao ouvir sirenes fora da gráfica. A porta abriu sem que alguém batesse antes (que ousadia!) e a secretária entrou chorando muito, soluçando e visivelmente transtornada.

— Seu Martins, uma coisa horrível…

— O que foi?

— Eu fui chamar o seu Alfredo, ele parecia estar trabalhando daquele jeito dele, sempre muito concentrado, aí eu fui olhar e ele tava de olhos fechados, achei que tava dormindo, mas aí cutuquei ele e o homem caiu de lado, parece que morreu, tá todo frio, chamei uma ambulância, eles tão aí na frente levando ele, não sei o que vai acontecer, meu Deus do céu…

Martins não esperou a secretária terminar sua desconexa narrativa e levantou-se com uma agilidade que parecia não haver mais naquele corpo privado de exercícios. Foi até a entrada da gráfica somente para encontrar os paramédicos com a maca e um corpo coberto por um lençol. Alfredo, soube então, estava morto. Só pôde ver seu funcionário ser colocado dentro da ambulância e levado, não para o hospital, mas para o IML.

* * *

O trauma de ter um companheiro de trabalho morto dentro da empresa cedeu lugar ao constrangimento no dia que se souberam de dois fatos. Primeiro, o laudo da autópsia atestava que Alfredo tivera um ataque cardíaco fulminante e o falecimento deveria ter ocorrido no início da manhã. Por que ninguém percebera? Segundo, não foram localizados parentes ou pessoa qualquer que reclamasse o corpo. A contribuição de cada colega acabou por suprir os custos de velório, preparação e enterro do velho e ultrapassado tipógrafo.

E foi apenas neste momento que Cíntia, Felipe, Jorge, Martins e toda a gráfica perceberam Alfredo como ele sempre estivera.

Só.


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