Presente de Dia dos Pais
Texto e narração: Thiago André Monteiro
Edição: Chico Gabriel
Pai,
você deve saber ou já deve ter ouvido — eu mesmo ouço isso de muita gente sobre mim — que te dar um presente é muito difícil; é um grande desafio! Não posso responder pelos outros, mas, para mim, escolher um presente para você não é só um desafio, mas é um desafio que gosto de fazer. Sempre tento achar alguma coisa que realmente te fará feliz (apesar de às vezes não conseguir). Bem, dessa vez não foi diferente e, depois de rodar quase o shopping inteiro, nada me agradou. Então voltei a pensar em uma ideia antiga que nunca tive coragem ou ousadia de colocar em ação e decidi: “Desta vez vou fazer isso!”. Sei que você odeia a ideia de escrever um diário, então saiba que não é isso que estou sugerindo. Vou continuar falando e, no final, tudo ficará claro.
Já nem sei quantas vezes eu me martirizei pelo fato de não me envolver a fundo com as pessoas. Sei que isso é uma característica minha (será que hereditária?) e acabei (quase) aprendendo a lidar com isso. O problema é que as pessoas não entendem muito bem isso. Elas não entendem que o amor, respeito e carinho que sinto não estão necessariamente ligados à atenção que dispenso a elas. Só sei que, conforme o tempo passa, eu sempre me arrependo de não ter ido fundo na vida de algumas pessoas como deveria. Por exemplo, eu morei por alguns anos com o vô na época da faculdade. Naquele tempo tive uma enorme oportunidade de conversar com ele sobre a vida, compartilhar suas histórias, mas sinto que não fiz o suficiente. E sou assim com praticamente todo mundo que eu amo. Como eu queria ser um filho próximo a você! Conhecer as coisas que você viveu, amou, chorou… Você não tem ideia de como me foi importante, por exemplo, aquele tempo em que passamos só nós dois na piscina do hotel em nossas últimas férias. Pai e filho a sós, falando da vida.
Pai, você é o homem mais importante e influente da minha vida! Você, assim como eu, é cheio de defeitos, mas isso não muda o fato de que Deus soube escolher o meu pai! Eu guardo tantas memórias de você na vida! A gente é tão parecido que, às vezes, até me assusta!
Lembro de quando, uma vez, você estava arrumando alguma coisa no telhado e eu quis subir também. Você me convidou e lá fui eu subir na laje da garagem, apoiando o pé direito naquele murinho que tinha no quintal. Depois de um tempo só nós dois (como eu amo esses momentos!) lembro que você desceu primeiro e que, quando estava lá embaixo, pediu que eu pulasse de lá para você me agarrar em vez de eu descer pela escada. Eu senti tanto medo, pai, que fiquei paralisado. E você lá, com os braços para cima: “Pula, filho! Eu te pego!”, nem sei quantas vezes. Eu pensei tantas vezes se deveria; relutei e relutei, mas não pulei. Não sei se o que você fez foi algo muito sábio (pedir que um filho pequeno pulasse do telhado), mas sei de uma coisa: eu me arrependo de não ter confiado em seus braços cada vez que me lembro dessa história.
Eu já tinha tanto orgulho de você, pai. Eu escolhi o meu time de futebol, apesar da draga que ele era naquela época, só por causa de você. Eu não tive dúvidas: é claro que eu torço para o time do meu pai. Do meu herói. Não importa para quem os meus melhores amigos torcem. Não importa se eu nunca vi ou se nunca verei o meu time ser campeão de alguma coisa. Eu torço para o time do meu pai. Nunca esqueço do dia em que você trouxe para casa o primeiro uniforme do meu time; do nosso time.
Aliás, falando em futebol, como eu amava os sábados! Quando a gente ia, só nós dois, ao clube de campo para você jogar futebol e eu ficar assistindo. Depois, íamos à sauna. Eu lembro que era a única criança que ia sempre. Ouvia os palavrões do jogo e do truco, tinha medo de entrar na sauna por causa daquele aviso na porta dizendo que ela não era indicada para crianças, mas ia assim mesmo para ficar do seu lado. Me orgulhava ao ver o meu pai se preparando para a “batalha” enquanto enrolava as faixas nos pés por baixo daquele seu meião verde. Eu morria de vontade de jogar também, mas entendia que não era para mim; não para o meu tamanho. Então, me contentava em ficar torcendo pelo meu pai do lado de fora. Por horas e horas, semana após semana. Era como ver o meu herói em ação! Interessante que, na época, eu nunca cogitei que talvez você não fosse tão bom assim. Pelo contrário, ficava inconformado por você não ser um dos primeiros a ser escolhido quando os times eram formados: “Como eles são burros!”, pensava. E, nas raras vezes em que você fazia um gol, eu corria como um louco comemorando! “Meu pai fez um gol! Meu pai fez um gol!”
Lembro com muito carinho das idas e vindas na Belina amarela e no Fusca branco. Talvez eu goste tanto de Fusca por causa das lembranças que ele me traz dos tempos em que éramos só eu e meu pai (estou chorando agora enquanto escrevo).
Lembro com detalhes do dia em que voltamos do clube de campo e conversamos sobre sexo. A gente chegou em casa antes de você terminar de me explicar, então você não parou: continuamos andando de carro enquanto você me explicava. Será que eu terei um momento desses com o meu filho?
Lembro de esperar você chegar de ônibus fretado do trabalho (para a minha mente de criança pareciam horas de espera). Às vezes você descia lá na esquina, no pé do viaduto, e vinha a pé. Eu ficava no portão esperando você atravessar a última rua e entrar na nossa calçada só para poder sair correndo te abraçar! Lembro de você me acordar de manhã para me dar um beijo antes de sair para o trabalho. Interessante como eu nunca me incomodei por ser acordado antes da hora. Lembro da mãe com a comida esfriando na mesa e a gente esperando mesmo assim você chegar para jantarmos juntos.
Foram tantos momentos marcantes! Alguns nem aconteceram tantas vezes assim, mas para mim guardo como se fossem memórias que aconteciam sempre. A gente subindo no terreno para soltar pipa. Eu dirigindo no seu colo na estrada de terra. Eu andando de ônibus fretado com você na volta do seu trabalho, quando o motorista levava a gente para dar uma volta no quarteirão. A gente indo comprar fitas do Atari nas lojas do centro. Você andando na sua Caloi 10 junto comigo.
Deus, obrigado pelo meu pai! Que ele esteja na eternidade comigo (estou chorando de novo…).
Pai, eu sei que fiz algumas coisas muito feias também. Uma vez — eu devo ter aprontado alguma coisa, não lembro o quê — você tomou a bola que eu estava jogando e, muito irritado, furou-a com a faca da cozinha. Eu fui para o meu quarto muito bravo por você ter feito isso e, quando você veio me pedir desculpas, claramente chateado e arrependido, eu inventei que tinha ganhado aquela bola da vó (ela tinha morrido há bem pouco tempo). Pai, eu inventei aquilo porque estava com tanta raiva de você que também queria vê-lo sofrer. Por favor, me perdoe por isso (estou chorando de novo…). Acho que foi uma das coisas mais feias e baixas que eu fiz na vida e espero que você não tenha guardado isso no seu coração por muito tempo.
Por favor, me perdoe pelas inúmeras vezes em que te fiz sofrer; não importa como. Você tem que saber que eu te amo muito. Você é o meu pai. Com certeza tem muitos defeitos, mas uma coisa que não tenho como questionar é o amor que você sente por mim.
Voltando às coisas boas, me lembro com muito carinho da vez em que você me levou para fazer a matrícula na faculdade. A sua alegria era palpável. E esse foi mais um momento importante na minha vida, pois foi um tempo só nosso (aliás, tem uma surpresa para você no bolso interno da contracapa desse caderno: uma foto daquele dia em que estou todo pintado de tinta por causa do trote e você ao meu lado com a cara mais orgulhosa do mundo).
Lembro não só do seu choro no meu casamento, mas da bomba emocional que foi para você passar aquele dia. Tenho medo de como será quando for a minha vez de passar por isso.
Enfim, pai, o meu presente é um caderno. O mais bonito que eu consegui encontrar. Quase comprei um caderno com linhas, mas enquanto escolhia me lembrei dos dias em que você estava desenvolvendo o logotipo da sua loja (aquele “M” de quatro lados) e de quanto você tinha se dedicado a ele. Lembrei que você é um engenheiro e pensei no prazer que deve ter ao desenhar e rascunhar. Concluí, então, que talvez as linhas atrapalhem.
Também pensei que o presente tinha de vir acompanhado de uma boa caneta. A princípio pensei em comprar uma Bic comum, afinal, que caneta é melhor do que a boa e velha Bic, não é? Mas, então, me lembrei da sua Pentel 0.7 azul, que fez com que eu a escolhesse também como minha lapiseira na faculdade. Assim como foi com o time de futebol, a minha lapiseira foi a Pentel 0.7 azul só porque tinha sido antes a escolha do meu pai. Mas fiquei com medo de que o tempo apagasse as palavras escritas com grafite, então comprei uma caneta (Pentel 0.7, é claro).
Finalmente, explicado o caderno, não espero que você escreva um diário, mas que aproveite os momentos em que estiver sozinho (eles são os melhores para isso) e escreva memórias que te fizeram feliz na vida (como estou fazendo aqui em suas primeiras páginas, meio que começando ele para você). Fale da sua avó, do seu pai, da sua mãe, da sua infância, das viagens inesquecíveis, das coisas gostosas que fez, dos amigos que passaram, da esposa, dos filhos, dos netos; enfim, dos momentos marcantes. Aproveite para colecionar nele fotos e papéis que lhe tragam boas lembranças (tem um bolsinho para isso). Não se preocupe com coerência de frases, erros de português, tamanho do texto (às vezes poucas palavras falam mais)… Resumindo, não se preocupe com o leitor, mas com o autor (você). Escreva, desenhe, rascunhe… use como quiser.
Minha esperança é que ele te traga momentos particulares de alegria, porque, para mim, parar o tempo para relembrar fatos faz bem (e, como somos tão parecidos, talvez você sinta o mesmo e nem saiba disso ainda). Não precisa ficar mostrando para ninguém. Se quiser sumir com esse caderno, é sua opção. Mas saiba que, um dia, seria muito legal ganhar de presente esse caderno todo escrito. Assim, se não tivermos muitos momentos só nós dois para você me contar suas histórias, você as poderá contar através dele.
Pai, te amo demais. Obrigado por ser o meu pai.
Thiago André Monteiro
agosto, 2016