A viagem
Texto: Thiago André Monteiro
Narração: Chico Gabriel e Leonardo Santos
Edição: Chico Gabriel
Era um feriado prolongado comum na grande São Paulo, mas como meus pais eram comerciantes, teriam que trabalhar. Eu, consequentemente, estava fadado a ficar em casa em pleno verão. Mas, pela primeira vez nesta história, o Arthur me salvou.
O Arthur era um grande amigo. Nossas famílias moravam na mesma rua desde antes de eu nascer, mas nossos pais só se conheceram no hospital. Mamãe ficou grávida de mim na mesma época que a mãe do Arthur esperava por ele. Em certo sentido, como diz a música do Cazuza, “nossos destinos foram traçados na maternidade”. — Eu gostava tanto dessa música, mas agora nem consigo mais ouvi-la.
O Arthur nasceu no dia 3 e eu no dia 4. Perdi as contas de quantas vezes ele bancou ser o meu “irmão mais velho” na rua — Me respeita, moleque, que eu sou mais velho que você!
Voltando ao feriado prolongado, ainda me lembro de quando o pai do Arthur veio perguntar para o meu pai se poderia me levar para viajar com eles. Meu pai ficou meio relutante, mas acabou deixando. E lá fomos nós para o litoral.
Meu pai, apesar de ser amigo do pai do Arthur, não gostava muito do fato da família dele ser cristã. Na verdade ele nunca disse isso para a gente, mas dava para ler nas entrelinhas. Na época, assim como meus pais, eu não acreditava em Deus, mas não me incomodava com o fato do Arthur ir todo domingo de manhã à igreja. Pra ser sincero, eu até gostava, pois eu, o “irmão mais novo”, tinha que narrar toda a corrida do Senna depois que o Arthur voltava e eu adorava ver e recontar as emocionantes corridas daquela época. — Eu gostava tanto de Fórmula 1, mas agora nem consigo mais assisti-la.
A viagem foi muito gostosa. O sol estava muito forte e a gente passava o dia inteiro na praia. Só voltava para dentro de casa depois que o sol se punha e a gente começava a ficar arrepiado com o frio.
Lembro que jogamos muito futebol e vôlei de praia. Foi também nessa viagem que fiquei em pé numa prancha de surfe pela primeira vez. O Arthur ficou insistindo para eu tentar subir numa “prancha de verdade”, como ele dizia, e deixar de lado a minha tão surrada e querida prancha de bodyboard verde-limão — Eu gostava tanto de pegar jacaré com a minha prancha, mas agora nem consigo mais segurá-la.
E tudo aconteceu no último dia de praia.
O Arthur e eu entramos na água. O dia estava mais quente que os anteriores e o mar estava incrivelmente tranquilo.
Já tínhamos ultrapassado as ondas há tempos, mas seguíamos adiante naquela piscina maravilhosa. De repente, a maré começou a nos puxar para dentro.
A gente tentava nadar de volta, mas não conseguia de jeito nenhum. Ficamos brigando com a força das águas por quase uma hora e ninguém percebia a nossa agonia. A gente tentava gritar, mas ninguém ouvia nada no meio daquele silêncio ensurdecedor.
Depois de muito tempo, o pai do Arthur viu a gente acenando. Ele entrou desesperado para nos resgatar. Nós estávamos muito cansados.
Depois de um tempão brigando com o mar, ele chegou…
Chegou bem na hora que eu fiquei com cãibras. Malditas cãibras.
Ele não ia conseguir pegar nós dois ao mesmo tempo. Até tentou agarrar um em cada braço, mas a maré começou a levar nós três. O desespero dele ficou ainda mais nítido quando ele ficou parado, tentando pensar o que fazer.
Foi quando o Arthur, pela segunda vez nesta história, me salvou.
— Pai, leva ele primeiro. Depois você volta para me pegar.
— Mas, filho…
— Pai. Eu te amo. Eu sei para onde eu vou e eu sei para onde o senhor vai, mas ele ainda não sabe.
Na época não entendi o que o Arthur quis dizer, mas hoje sei que foi a única coisa que ele poderia ter dito para convencer o seu pai a deixá-lo lá e salvar a mim.
Nunca mais vou esquecer essas palavras: “Eu sei para onde eu vou e eu sei para onde o senhor vai, mas ele ainda não sabe.”
Fui deixado na areia e o pai do Arthur, com lágrimas nos olhos, entrou novamente na água para buscá-lo, mas Deus o buscou primeiro. — Eu gostava tanto do mar, mas agora nem consigo mais pisar na água.
Hoje eu sou salvo pelo mesmo Cristo que salvou o Arthur. O mesmo Cristo que fez o Arthur me salvar. O mesmo Cristo que convenceu o pai do Arthur a salvar a mim ao invés do próprio filho.
Hoje eu espero ansiosamente o dia em que vou poder abraçar o meu “irmão mais velho” de novo. Nesse dia vou poder contar para ele que o meu filho também se chama Arthur.